Shelter em São Paulo: o retorno que uniu hardcore e espiritualidade
O ano de 2024 foi marcante para a cena hardcore paulistana, e grande parte desse feito se deve à New Direction Production (NDP), idealizada pelo produtor Bruno Genaro. A produtora começou suas atividades em março, organizando a turnê das bandas Angel Du$t e No Warning no Jai Club. Desde então, promoveu uma avalanche de eventos com nomes de peso do hardcore underground, como H2O, Gorilla Biscuits, Joyce Manor, Gouge Away, entre outros.
O ponto alto, porém, foi reservado para o final! Encerrando com chave de ouro sua bem-sucedida temporada de estreia (com praticamente todos os eventos registrando alta procura, com vários sold-outs), a marca brindou o público paulistano no último domingo (15) com o retorno do Shelter, um dos maiores representantes do Hare Krishna hardcore, após 24 anos longe dos palcos da cidade. O evento, realizado no Carioca Club, contou ainda com a participação de bandas nacionais como Against The Hero, Mais que Palavras e Bayside Kings.
Formada em 1991 por figuras de destaque do hardcore nova-iorquino, como Porcell (guitarrista do Judge), Ray Cappo (vocalista do Youth of Today) e Sammy Siegler (ex-baterista do Project X e Side By Side), o Shelter é considerado um dos pilares do subgênero conhecido como krishnacore. Suas letras abordam temas como espiritualidade, autoconhecimento, veganismo, renúncia aos prazeres materiais e a filosofia Hare Krishna. Musicalmente, a banda combina a energia do hardcore punk com melodias acessíveis, influências do rock alternativo e referências à música indiana.
Apesar das críticas e resistências dentro da própria cena punk, Shelter conquistou uma base de fãs fiel e revolucionou o straight edge e o movimento punk como um todo.
- Shows
O evento histórico para o hardcore paulistano começou com o set enérgico do Against The Hero. Formada em 2012, a banda já é conhecida pelo público por sua ativa participação na cena hardcore nos últimos anos da década de 2010, além de ter aberto shows para algumas bandas internacionais de destaque. Com uma sonoridade voltada para o hardcore melódico e técnico, fortemente influenciada por nomes como Belvedere, A Wilhelm Scream e No Trigger, o grupo se destacou por trazer um contraste interessante ao line up predominantemente straight edge.
Mesmo indo na contramão do estilo das demais bandas da noite, o Against The Hero capturou a atenção do público presente com letras em português e inglês que abordam questões pessoais e críticas políticas. Entre as surpresas do setlist, a banda apresentou o single “Emergir”, lançado neste ano após um longo período de hiato criativo. Com esse retorno sólido e novidades no horizonte, 2025 promete ser um ano de plena retomada para o Against The Hero.
Na sequência, foi a vez do Mais Que Palavras, um dos nomes mais populares do hardcore de Brasília. A banda já chegou ao palco carregando uma forte mensagem política, exibindo uma bandeira da Palestina e declarando apoio contra a escala de trabalho 6x1. O show foi extremamente vibrante, com destaque para a performance intensa do vocalista Maneko, que corria e pulava pelo palco com entusiasmo contagiante, além de fazer intervenções entre as músicas com falas inspiradas pela filosofia PMA (Positive Mental Attitude).
No repertório, os fãs puderam aproveitar várias faixas do álbum “Dual”, lançado em 2021, cujas letras abordam temas de forte cunho pessoal e filosófico. Apesar de serem uma banda straight edge, a sonoridade apresentada foi acessível e cativante, misturando elementos de hardcore melódico com vocais agressivos. A escolha de incluir o Mais Que Palavras no line up se mostrou acertada, tanto pela energia do show quanto pela ideologia política alinhada à ideologia da atração principal.
Encerrando o bloco de atrações nacionais, subiu ao palco o Bayside Kings, grande destaque do hardcore moderno na cena da Baixada Santista. Ao longo de 2023 e 2024, a banda esteve em evidência, participando da abertura de diversos shows internacionais. Desta vez, para fugir do habitual, os integrantes prepararam uma surpresa: um set composto exclusivamente por faixas em português, retiradas dos EPs “(R)evolução” (2024), “Tempo” (2022) e “Existência” (2021).
Conhecidos por suas apresentações intensas, marcadas por mosh pits frenéticos, stage dives e grande participação dos fãs, o show do Bayside Kings desta vez teve uma atmosfera mais contida, reflexo de uma menor presença de seus seguidores mais fieis. Ainda assim, o grupo entregou uma performance sólida, reforçando sua relevância na cena hardcore nacional.
Finalmente, após 24 anos de espera, o momento tão aguardado chegou!! Após uma sequência de shows agitados, a atmosfera mudou com a introdução de um cântico budista, o mesmo mantra que abre o álbum lançado em 1995. Em seguida, os integrantes subiram ao palco e deram início ao set com a poderosa “Message of the Bhagavat”. Com seu riff denso e agressivo, lembrando o peso de uma faixa do Judge, não demorou para o espaço se transformar em um caos completo, com dezenas de fãs se jogando em stage dives.
Sem interrupções, o quarteto seguiu com “Civilized Man”, um dos principais singles do álbum “Mantra”, mantendo o público em êxtase. O show continuou com um bloco especial dedicado ao álbum mais aclamado da banda, incluindo as faixas “Appreciation” e “Empathy”, que mantiveram a energia em alta.
Entre as músicas, o vocalista Ray Cappo trouxe reflexões alinhadas à filosofia budista, destacando a importância de ser grato pelas pequenas coisas e ressaltando que aquisições materiais são irrelevantes para o verdadeiro bem-estar do indivíduo. Ele também aproveitou para se desculpar pela longa demora em retornar ao Brasil, o que só aumentou a emoção do reencontro com o público.
Logo em seguida, veio um bloco com uma verdadeira mistura de fases da carreira, passando por faixas como “Better Way” e “In Praise of Others”, do álbum “Attaining the Supreme” (1993), e também por canções como “Song of Brahma” e “When 20 Summers Pass”, do disco homônimo lançado em 2000. Ainda houve espaço para a raridade “Hated to Love”, do álbum “Beyond Planet Earth” (1997). Em nenhum momento o público perdeu o fôlego, com fãs invadindo o palco para cantar junto com Ray Cappo, que acolheu o entusiasmo sem hesitar, dividindo o microfone com os mais empolgados.
Na reta final, o frontman mostrou total domínio sobre o público ao iniciar uma interação que envolveu tanto a pista quanto os camarotes antes de tocar “Here We Go Again” — um dos maiores hits da banda, amplamente popular no Brasil devido à exibição de seu videoclipe na antiga MTV e à sua presença na programação da 89 FM até os dias atuais. Mesmo após o clímax dessa música, a energia não diminuiu. Os seguidores continuaram animados durante a performance de “We Can Work It Out” (cover dos The Beatles), seguida pelas emocionantes “Saranagati” e “Shelter”, que encerrou o set com chave de ouro.
Mais do que um simples show, o Shelter entregou uma experiência carregada de energia e positividade. Independentemente de religião ou crença, as falas de Ray Cappo entre as músicas geram identificação imediata por serem extremamente relevantes, trazendo mensagens de paz e reflexão — algo essencial para os tempos marcados pelo ódio e pela intolerância na qual estamos vivendo.
Setlist
Message of the Bhagavat
Civilized Man
Appreciation
Empathy
Better Way
When 20 Summers Pass
In Praise of Others
Mantra
In Defense of Reality
Hated to Love
Song of Brahma
Here We Go
We Can Work It Out (The Beatles cover)
Saranagati
Shelter